25/04/18

Os livros que escolhem leitores

texto de Raquel Ochoa
Em exclusivo para os seguidores da página de Luís Osório.

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OS LIVROS QUE ESCOLHEM LEITORES
Alguns livros encontram-nos - seja lá onde ou como for. São os melhores - ao meterem-se na nossa vida, na nossa mala, na nossa casa, sem perguntarem se os queríamos, sem pedirem por favor.
Tal aconteceu na livraria do espaço Pessoa e Companhia na Calçada de Santana. Este livro queria sair dali, Gerrit Komrij insistia em falar comigo.
A sua prosa é hilariante, mas a vida em Portugal é hilariante. Suspeito que o seu génio literário teve pouco trabalho na composição de “Um Almoço de Negócios em Sintra”.
E do que fala Komrij?
Fala da vida normal do campo onde vivia, com quatro gatos e “uma cadela de circo”. Fala de como um simples almoço de negócios em Portugal é um ritual de comezaima extensível a muitas horas onde se pode falar de tudo mas é de mau tom abordar o tema causador da reunião. Fala de transmissões de propriedade do arco da velha, com negociatas/esparrelas que todo o português se viu já enredado. Fala do lixo no chão, em todo lado. Fala da mentalidade retrógada quer na igualdade de sexos, quer na liberdade em relação ao sexo. Fala do enorme fosso entre a ruralidade e as “únicas duas cidades e meia” existentes no país. Fala da nossa constante simpatia sem possibilidade de qualquer intimidade, mas sempre à espreita do chiste, do trocadilho, da convivência social com semelhanças a um teatro de revista.
E fá-lo da maneira mais elegante e divertida que possam imaginar. Não ofende, observa - e às vezes até admira.
Definitivamente fascinado pela solidão (ou não trocaria Amesterdão por Vila Pouca da Beira) Gerrit Komrij tem o condão de transformar cada frase num desafio. Como esta (a propósito da urbanização das últimas décadas, na grande maioria um ultraje aos olhos):
“Barracas disformes, por toda a parte. Demasiado bojudas ou, exactamente, demasiado esqueléticas. Uma loucura de olhos esbugalhados feita de betão. É um milagre do espírito humano e uma homenagem à nossa pulsão de sobrevivência que a fealdade, desde que coerente e sistematicamente repetida, acabe por se nos tornar invisível.”
O livro, no seu pequeno tamanho, agiganta-se a cada novo capítulo.
Destaco dois temas: a burocracia em Portugal e os incêndios.
Gerrit Komrij, tal como o arquitecto Manuel Vicente a quem muitas vezes ouvi dizer “prefiro ir a um funeral do que a uma repartição de Finanças”, foi engolido pela burocracia vegetativa reinante durante muitas décadas. É um dos aspectos em que, desde 1999, há uma notória mudança. Ainda não é um mar de rosas, mas as descrições em “Um Almoço de Negócios em Sintra” lembram-me a época dos funcionários públicos tiranos embuídos numa preguiça providencial desprezando todo o cidadão atrevido ao ponto de lhes dirigir a palavra.
Constato com agrado ser isto um país do passado.
Quanto aos incêndios, tiro no alvo - descreve a louca psique portuguesa que acha normal - “uma espécie de regeneração” - ver as serras a arder. Sem nunca serem tomadas medidas eficazes.
Impressiona como nada mudou, só piorou, neste aspecto.
Há uma descrição de um castanheiro a ser consumido pelo fogo do princípio ao fim capaz de arrepiar os mais insensíveis leitores.
Publicado em 1999, quando Gerrit Komrij já vivia há muito tempo atrás das fragas na aldeia de Alvites (Trás-os-Montes) entre 1984 e 1988, ano em que se mudou para Vila Pouca da Beira, no distrito de Coimbra – este livro leva-nos aos recantos da alma portuguesa.
Enquanto povo, somos adoráveis e um bando de loucos. Só alguém de fora poderia escrever um livro assim - não temos capacidade para a auto-análise e já lá vão muitos anos a viver dessas consequências.

Raquel Ochoa